{Estrangeira #16} Teufelsberg: de pântano a seita do David Lynch
Quantos usos podem atravessar um mesmo lugar?
Sou fascinada pela reutilização de estruturas. Lugares concebidos para serem uma coisa e que se tornam outra completamente diferente. Igrejas que viram escola de skate ou restaurantes, fábricas que viram centro cultural. Mas nada, nada mesmo se compara a história da reciclagem de propósito de Teufelsberg em Berlim.
Berlim nasceu sobre um pântano, um terreno quase sem elevações. Praticamente todos os morros que você vê na cidade estão lá para enterrar algo ou é simplesmente entulho coberto de grama. O ponto mais alto da cidade está incluído neste grupo: é o Teufelsberg, ou Morro do Diabo. Quem visita a estrutura hoje, conhece os murais coloridos mas, não imagina as camadas (literais) de história sobre as quais pisa.
Governo nazista e o fim da Segunda Guerra
Tudo começou com Hitler. O governo nazista alemão teve uma ideia. Resolveram construir uma universidade militar gigante às margens da floresta Grunewald no extremo oeste da cidade. Em governos autoritários, tudo é mega, já percebeu? Com a universidade militar não seria diferente. Só que aí a Segunda Guerra Mundial começou, o dinheiro acabou, e a estrutura incompleta do lugar passou a servir como um depósito bélico.
Quando a guerra acabou, Berlim era puro escombro e, assim como o resto do país, foi dividida em quatro setores entre os aliados. A tal escola militar/depósito de armas ficou dentro do setor britânico, bem na fronteira com a Alemanha Oriental e passou a ser usada como um grande lixão de entulho gerado pela guerra. Foi simbólico. Já que explodir o local custaria caro e possivelmente destruiria ainda mais a região, cobrir um símbolo nazista com lixo foi uma alternativa nobre.
Estação de esqui e de espionagem
Ali nasceu um morro, o mais alto de toda a cidade. Do morro nasceu uma estação de esqui com teleférico e tudo. Ao mesmo tempo, com o avanço da Guerra Fria, o Reino Unido percebeu a localização estratégica do Morro do Diabo e montou uma estação de espionagem em seu cume em cooperação com os Estados Unidos. Era o local perfeito para captar transmissões de rádio vindas da Alemanha Oriental.
Os esquiadores passaram a perturbar este trabalho e por anos o Morro do Diabo funcionou apenas como estação de espionagem. Até que as fronteiras se abriram, a Alemanha foi reunificada e o Morro do Diabo foi desocupado. E é a partir daí que a história fica ainda mais maluca.
David Lynch e o presente
Em 2007, David Lynch (sim, o diretor) compra este pedacinho de história para a Maharishi Peace Foundation, um tipo de seita espiritual na qual ele está envolvido. Daí o diretor, acompanhado do seu guru alemão Emanuel Schiffens, vai a Berlim anunciar a aquisição e seus planos para o futuro para um salão repleto de estudantes de cinema e admiradores da seita. Como Lynch não fala alemão, é o guru que conta como eles planejam criar uma universidade transcendental com o objetivo de tornar a Alemanha invencível.
Isso mesmo. Tornar a Alemanha invencível ali do topo do Morro do Diabo onde Hitler, apenas algumas décadas antes, pretendia fazer O MESMO. Foi um bafafá. As pessoas perguntavam "QUE" e ele respondia "Sim, sou um bom alemão, quero uma Alemanha invencível!", aí o povo "Mas era isso que Hitler queria" e ele "Pois é, mas não conseguiu porque não teve a técnica correta". Estou parafraseando aqui, você pode ver por si só no vídeo abaixo imagens deste dia.
Claro que eles nunca receberam permissão para construir nada e o Morro do Diabo ficou em um limbo até que se tornou uma atração turística informal e uma comunidade hippie. Quase 10 anos depois do fiasco lynchiano, Berlim declara o Morro do Diabo um monumento histórico e, portanto, protegido por lei e funciona como uma galeria de arte de rua e local de eventos.
Eu diria que o Morro do Diabo bateu recorde de reutilização. Em menos de 100 anos o local foi floresta, quase universidade militar, depósito bélico, lixão, estação de esqui, estação de espionagem, teve um projeto para uma universidade transcendental para uma Alemanha invencível, comunidade hippie, monumento histórico, galeria de arte de rua e local de eventos.
Nossa.
Mini curadoria semanal
Menciono o Teufelsberg (Morro do Diabo) no meu guia para visitar o Muro de Berlim. A versão mais atualizada é a em inglês, mas ainda dá para encontrar a versão em português também.
Tenho rido a beça com o podcast Caso Bizarro. Os comentários da Mabê são como os de uma amiga querida que a gente conhece desde adolescente, sabe?
Saiu uma coluna minha sobre as diferenças das festas infantis no Brasil, Alemanha e Portugal.
Pela diversidade, me lembrou até a carreira do Alexandre Frota!
Adorei! Sabia alguma coisa dessa história, mas não ela completa! Incrível! 😘