{Estrangeira #2} Museu dos Descobrimentos
Uma viagem ao mundo bizarro dos negacionistas da colonização.
Quem nunca ouviu ou reproduziu que o Brasil é uma terra harmônica onde pessoas indígenas, pretas e brancas caminham de mãos dadas em uma tocante mistura racial sem preconceitos? É chocante descobrir que este discurso foi cuidadosamente tecido por um alemão, o ganhador do concurso governamental "Como escrever a história do Brasil?" na primeira metade do século 19. Um concurso que pretendia definir uma narrativa capaz de acalmar ânimos e manter a ordem.
Após anos e mais anos aprendendo na escola que os povos originários eram idiotas que trocavam terra por miçanga, com sorte embarcamos na vida adulta em uma jornada de re-descobrimento da nossa identidade e nos damos conta que somos filhos de todo tipo de atrocidade institucionalizada.
Quando me mudei para Portugal, eu já sabia que queria usar parte do meu tempo aqui desbravando bizarrices sobre a colonização propagadas na metrópole. Aliás, aqui não se fala em colonização, mas sim na ErA dOs DeSCobrIMenToS e ainda não encontrei ninguém fora de círculos especializados que apresente qualquer tipo de entendimento factual sobre Portugal como nação colonizadora.
Viemos algumas vezes antes da mudança. Queríamos escolher a cidade certa para a nossa família e foi assim que nos deparamos com parquinhos infantis na temática caravelas. É muito estranho ver esta total falta de responsabilidade histórica. Sinto-me diante de um acidente do qual não consigo desviar o olhar e quero saber mais, sempre mais. Como chegamos a este ponto de alienação e negação da realidade?
É claro que isso se deve ao assunto da minha pesquisa acadêmica. Durante o mestrado e os anos de doutorado (que larguei no meio), foquei completamente nos diversos aspectos do patrimônio desconfortável. Como interpretamos e nos responsabilizamos pela história das atrocidades que cometemos contra outras pessoas? Essa foi a minha principal pergunta durante anos de estudo. Mesmo fora do meio acadêmico há alguns anos, essa pergunta ainda me pega.
Chegamos de vez em Portugal e aqui há uma vibe forte de ErA dOs DeSCobrIMenToS pride. Uma visita à biblioteca me apresentou uma sessão para adultos e outra para crianças sobre esta tal era que enche o coração do povo de orgulho. Conversas entreouvidas me fizeram estremecer de nervoso. O clima é de que os portugueses fizeram um favor aos brasileiros, quiçá ao mundo, ao ocupar nossas terras. Ainda assim, me vejo listando lugares para visitar que certamente me deixarão pau da vida.
O primeiro a cortar da lista foi o Museu dos Descobrimentos em Belmonte, uma vila histórica fofinha e instagramável. Foi em Belmonte que nasceu Pedro Álvares Cabral e é em Belmonte que encontramos uma estátua enorme do ídolo português. Lembro-me de decorar seu nome como resposta no primário para a pergunta "Quem descobriu o Brasil?". Nada sobre a dizimação planejada dos indígenas que até hoje vivem em uma guerra constante por terras demarcadas que são suas por direito. O discurso era de que os povos originários não foram escravizados por serem avessos ao trabalho, não por serem resistentes à colonização. Não sei como é hoje, só posso esperar que seja melhor que isso.
Minha mente divaga para uma visita técnica que fiz à Quissamã no estado do Rio de Janeiro. A Fazenda Machadinha ainda mantém a sua antiga senzala, hoje modificada em apartamentos, onde descendentes de pessoas escravizadas vivem. Outro prédio se transformou em um restaurante onde estes mesmos descendentes fazem uma comida típica para servir turistas brancos que depois vão assistir a uma apresentação de jongo. A comodificação e romantização da escravização de pessoas inocentes não choca ninguém e é bancada pela prefeitura local.
Volto para meu corpo que está em Belmonte no Museu dos Descobrimentos. Ali a energia é a mesma dos meus livros de escola. A diferença é que estamos falando de um museu no século 21. É um museu moderno, com poucos artefatos e muita interatividade. O percurso começa, é claro, com uma caravela e chega até a admiração pela ditadura militar no Brasil. Toda a exposição se refere aos povos originários como índios, um termo vazio e ultrapassado inventado pelos colonizadores e que causaria revolta em historiadores atualizados, mas surpreendentemente este é o menor dos problemas ali. É difícil enumerar e descrever todos os horrores que testemunhei no Museu dos Descobrimentos, mas gostaria de focar em três grandes choques.
1.
O primeiro foi com uma tela interativa onde o visitante oferece para o indígena na tela um objeto que representa uma panela ou uma pulseira, por exemplo, e o indígena devolve ao visitante um objeto de sua terra, como um cocar. Na mesma sala fala-se do "estado primitivo de desenvolvimento" dos indígenas brasileiros.
2.
O orgulho ao mencionar as missões de evangelização e a atuação dos bandeirantes. A história de massacres violentos é toda apresentada como se fossem favores feitos ao Brasil em nome do desenvolvimento.
3.
Agora, a cereja do bolo: uma sala com uma cela onde o visitante pode se algemar e tirar uma foto como se fosse uma pessoa escravizada. Como se fosse muito divertido, quase uma piada. A coisa é tão ofensiva que o texto onde o sequestro de pessoas para trabalho forçado no Brasil é minimizado em um discurso cheio de números e generalizações quase passa despercebido.
Queria chorar no fim da exposição e precisei de duas semanas para organizar meus pensamentos. Agora já estou pronta para o próximo lugar da minha lista para passar nervoso.
A parte da cela da exposição é sem comentários. Precisam ir a JHB e visitar o museu do Apartheid pelo menos 20x pra ver se entra alguma coisa. A cela do Mandela em Cape Town também seria uma boa ideia.
Uau! Impressionante como não parece haver uma atualização do discurso, um reconhecimento das opressões e dos crimes praticados e, principalmente, uma reverência respeitosa aos povos originários, que tem problemas como tantos outros mas que também tem tanto a nos ensinar até hoje sobre comunidade e inserção e preservação ambiental. Em “o começo da vida 2, lá fora” isso é feito com maestria, quando pedem a uma criança branca que desenhe a natureza e ela desenha uma árvore; já quando pedem a uma criança indígena que desenha a natureza ela desenha ela própria.