Sempre me senti estrangeira. No meu bairro, na minha casa e até entre amigos. Foram poucas as pessoas que me fizeram sentir-me em casa, aliviada, segura. Acho que casa não é um lugar, mas uma circunstância. Por isso no Natal, por mais que hoje lembre com carinho de certas tradições, eu nunca senti aquele pertencimento do qual tanto escuto.
Já passei o a data em várias partes do mundo. Isso começou quando tinha seis anos e meu pai me levou para ver a árvore do Rockefeller Center e para subir o World Trade Center em Nova York. Meu pai juntava a grana que podia para viajar e também para ajudar os outros. Vivia com pouco para viver muito. Fez isso até seus últimos dias.
Em 2005/2006, eu fiz o tal do work experience, programa onde universitários brasileiros passam as férias de verão no inverno americano trabalhando por 7 dólares a hora (ou menos) para pagar pela viagem. Foi durante esta experiência, a minha primeira por meses longe do Brasil, que descobri que eu era exótica para muita gente e que pertencer não depende de lugar, mas da troca.
“Agora é verão no Brasil? Então vocês comemoram o Natal em julho?”
Fui trabalhar em um cassino em Reno no estado de Nevada e ouvi o mesmo CD com clássicos gringos de Natal por 8 horas diárias durante o mês de dezembro. Era menor de 21 anos, a maioridade ameriqueina, então não podia trabalhar com álcool, que era o trabalho que dava mais grana ali. Trabalhei como recepcionista em um restaurante daqueles de bufê com lagosta e camarão gigante. Uma vez por semana cobria folga como caixa em outro mais chique, onde todos os garçons me traziam comidas incríveis no quartinho em que ficava. Acho que passei esse Natal trabalhando em um desses tristes lugares, não tenho certeza. Mas sei que foi o primeiro longe de toda a família e em outro país.
Muitos dos brasileiros que trabalhavam no cassino moravam em um mesmo prédio com quitinetes já mobiliadas. Meu primeiro apartamento foi com uma garota que conheci no aeroporto. Não nos desentendemos, mas não tínhamos nada em comum então ela me convidou para ir morar com outra pessoa. Passei a morar com a T. e a P. O apartamento tinha duas camas de casal e fazíamos um revezamento para, a cada três dias, podermos dormir em uma das camas sozinha.
Eu tenho tanta história de Reno que renderia um livro todinho, mas hoje estou aqui para falar de Natal fora de casa. O depois desse, eu passei trabalhando em um restaurante em Nova York. As pessoas em Nova York passam o Natal em restaurante. Nessa época eu ainda não dava bola para a celebração, mas não passaria em um restaurante se não estivessem me pagando.
Em 2010, passei o Natal em Belém, na Palestina, com meu pai e meu amigo C. Foi a primeira vez que comi falafel. Ficamos os três tentando ver o presidente passar, mas só conseguimos ver os carros oficiais. Visitar a Palestina foi uma loucura, acho que daria outro livro, mas penso muito no presépio da minha avó no Rio de Janeiro e como a caverna em Belém, onde supostamente Jesus nasceu, não tem nada a ver com aquele ninho de palha.
Curiosamente, só passei a me importar mais com o Natal quando virei imigrante na Alemanha. Meu amigo C. sempre foi fã e acabei indo visitar alguns daqueles mercados mágicos de Natal na Alemanha com ele na tentativa de tirá-lo de casa no inverno. Naquele tempo a minha amiga M. também morava na Alemanha e me introduziu a este mudo a partir de alguns mercados no interior do país e eu entendi como aquela festa era capaz de trazer toda a comunidade junta em uma praça. Passei a observar mais atentamente como as pessoas celebram esta data e a querer participar também. Me apaixonei pelo vinho quente, comprei uma bota com solado grosso decente e integrei a magia natalina como parte da minha personalidade.
Teve um ano que meu pai foi me visitar na Alemanha e fomos com a M. para Nuremberg, o maior mercado de Natal do país. Foi uma delícia e eu guardei a caneca. Na Alemanha os mercados mais legais têm a sua própria caneca. Você paga um depósito por ela e depois pode devolvê-la e recuperar seu depósito ou levá-la para casa. Todo ano um novo design. Neste mesmo ano passei a noite de Natal em Roma com meu pai onde detestei os mercados e vi a árvore e o presépio gigante do Vaticano. Ficamos no frio do lado de fora para ver a missa do Papa e foi uma coisa chatíssima, entediante demais, mas estávamos juntos. Durante o dia fizemos coisa de turista e não parecia Natal, só parecia inverno porque era mesmo inverno.
Pouco menos de dois anos depois, meu pai morreu. Naquele ano o C. topou ir comigo para os mercados de umas cidadezinhas na Bavária que meu pai tinha conhecido com minha mãe nos anos 80. A ideia era também reviver Nuremberg, um jeito de lembrar aquele passeio que fizemos com a M. Fomos de ônibus de Berlim até Munique e tanto lá quanto em Augsburg conseguimos aproveitar os mercados. Nem passou pela nossa cabeça que o mercado de Nuremberg não funcionaria na noite de Natal e que em cidadezinhas da Bavária eles não funcionam depois do dia 25. Ceiamos em um restaurante chique e tradicional de Nuremberg que eu não podia pagar. Passeamos pelas ruas desertas de Garmisch e Oberammergau em um silêncio de fim da magia natalina, ressaca da alegria que só quem morou na Alemanha conhece. O C. roubou uma bíblia. Acho que precisávamos de alguma emoção. A viagem não foi o que esperávamos, mas foi boa também. Rimos muito, ficamos juntos e fui naquele raio de Oberammergau que meu pai sempre falava.
Será que pode ser Natal quando não parece Natal?
Acho que nessas viagens nunca trocamos presentes ou talvez até tenhamos trocado, mas nenhum deles foi importante o suficiente para guardar na memória.
Ainda não viajei com meus filhos no Natal, mas talvez não seja má ideia agora que não moramos mais perto de família e nos faltam obrigações. Hoje crio tradições para nos ancorar e criar memórias que espero que eles carreguem consigo. Acho que algumas estão pegando porque mesmo em outro país, meu filho perguntou se não deixaríamos os biscoitos que fizemos para os vizinhos.
Deixamos.
Nesta casa, onde mora uma brasileira, um alemão, duas crianças de lá e acolá e um cachorro português, onde falamos todos um dialeto internacionalíssimo, já não me sinto mais estrangeira.