No último dia no Camino, meu diário diz:
Em galego tudo parece meio que português. Escrito, né. Porque falado parece meio bêbado, estranho. Acho que é português, mas os jotas e gês eles trocam por xis. Enfim. Acordei muito cedo. Quatro e meia da manhã e não consegui mais dormir. Uma pessoa no dormitório ressonava como um gemido sensual e meu nariz segue mega entupido. Se pá, ronquei. Acabei levantando uma hora depois. Carimbei meu passaporte peregrino, comi um pedaço de pão e tomei um pouco de leite e acho que estava na porta antes das 6h30. Tudo escuro. Amanhece muito tarde ali, lá para as 8h30 só. Eu não trouxe lanterna. Ali na porta estava em dúvida se seguia para um povoado fora do Camino onde talvez houvesse um ônibus para Pontevedra ou se seguia pelo Camino por 12km até Caldas de Reis que era maiorzinha e que se o ônibus fosse inexistente, eu poderia dormir lá e talvez O. me buscasse no fim do dia seguinte chegando do aeroporto. Não pedi a ele, mas era isso que tinha em mente.
Literalmente em pé na porta do albergue vendo a chuva cair e o escuro lá fora, decidi. Seguiria pelo Camino e assim seria mais fácil continuar em uma próxima oportunidade. O que era certo era que eu não ia terminar agora. Andei por bastante tempo no escuro em estradinhas mal iluminadas. Fiquei com a lanterna do celular acesa para caso um carro passasse por ali, não me atropelasse, me visse. Assim fui por umas duas horas. Passei em frente de uma oficina em uma estrada de terra remota e vi um único homem lá sentado e fiquei com medo. Depois passei um tempinho olhando para trás, mas ninguém veio me perseguir. Na estrada que passava ao lado da trilha, ainda dava para ver a decoração de Natal do ano anterior. Em Vigo também tinha.
Passei por muitos vinhedos e umas aldeias esquisitas. Começou a chover mais forte, mas isso não me incomodou. O que me incomodava eram as bolhas que depois de um ponto começaram a doer com muita força mesmo com os curativos especiais que a Sherry, a idosa caminhando desde o Porto sem nenhuma bolha cultivada, me deu ontem. Eu estava me arrastando. Como ainda era muito cedo, não cruzei com ninguém nesse trecho. Eu tinha 4 horas para andar menos de 12km em um terreno quase sem elevação e achei que seria tranquilo, mas de repente vi que estava ficando BEM apertado. Comecei a andar mais rápido. A dor era uma loucura. Foi mesmo uma prova de força interior. Eu ainda tinha que passar em uma igreja para carimbar meu passaporte se quisesse recomeçar o Camino depois do mesmo ponto em que parei.
Incrivelmente, consegui. Primeiro entrei na igreja de Caldas de Reis e não vi ninguém. Sentei no banco e quase chorei. Resolvi dar uma olhada na igreja antes de ir e andando mais à frente, vi o carimbo. Que alegria! Eu já estava pensando em entrar em algum hotel aleatório e carimbar. Agora tinha que correr para o ponto de ônibus. Chegando lá, achei esquisito. Não parecia o lugar certo. Comecei a buscar freneticamente na internet e achei um endereço qualquer. Resolvi ir. Lá tinha mais gente no ponto, ainda bem. Esperei um tempo ali em pé na chuva e o ônibus para Vigo chegou. Custou menos de 5 euros e levou uma hora e meia para percorrer o que caminhei em dois dias e meio: 59km de Camino.
Já no ônibus comprei online a passagem para o Porto. Eu chegaria em Vigo às 12h30 e teria que esperar cinco horas até o próximo ônibus com assentos disponíveis. Fiquei sentada no shopping da estação olhando pro além e pensando. Comi batata frita no McDonald’s e me arrependi, mas do Sundae não me arrependo. Troquei minha roupa molhada no banheiro. Acho que uma garota riu de mim.
Do Porto peguei um carro de aplicativo e odiei o motorista xenofóbico que coloca a culpa dos problemas de Portugal em “marroquinos, ciganos e indianos”. Uma estrela. Estou em casa. Só tive coragem de olhar para o meu pé agora mesmo tendo ficado de chinelo já em Vigo. As bolhas estão gigantes e cobrem boa parte das almofadinhas dos pés. Agora há mais delas, inclusive na ponta e entre os dedos. Amanhã furo.
Eu não desisti, vou fazer os últimos dois dias em breve, mas também não vejo mal se tivesse desistido. Não sofro de vergonha ou de medo de desistir, sofro é de preguiça de persistir, mas prometo que não é o caso. :) Às vezes as coisas não correm como planejamos. E é só.
Bem-vinda de volta a casa!
Estou pensando nas bolhas…que dor! Mas não se deve furar bolhas, pois isso pode causar infecção e elas secam sozinhas. Existem hoje curativos apropriados para protege-las até que sequem. Mas se forem grandes e dolorosas demais e precisar estoura-las tenha cuidado para deixar a pele intacta para proteger a área exposta e assim evitar ferida e infecção. E use uma agulha estéril! Kkkkkkk dicas de Enfermeira. 😘