{Estrangeira #7} Memória do absurdo
Como nos conectamos com um passado que preferimos esquecer?
Um obelisco com vidro transparente recheado por prateleiras com crânios humanos. Uma vitrine repleta de sapatos de vítimas de um campo de extermínio. É assim que você impacta o visitante de um memorial com o nosso patrimônio desconfortável.
Em 2015, me graduei mestre em Patrimônio da Humanidade da UNESCO, mas me especializei na interpretação de lugares de memória que tratam do nosso patrimônio mais repulsivo e desconfortável. Morava em Berlim, uma cidade-laboratório para memoriais. Fazia sentido.
Foi Adorno que achou uma boa ideia deixarmos um pouco de lado as estátuas de grandes generais e imperadores e eternizarmos os horrores do Holocausto. A ideia é que evitássemos repetições impensáveis. Até então, eternizávamos para celebrar e não para assumirmos culpa ou lamentarmos os horrores que somos capazes de infligir ao próximo.
Há hoje em Berlim incontáveis memoriais. Lá, é possível ter uma visão geral da evolução destes monumentos em prol da memória do absurdo. Nem sempre foi assim. Até Adorno lançar suas ideias, o padrão era construir por cima do que dava vergonha. Negar mesmo, na cara dura. Aí se reconstruía o que estava lá antes da vergonha e assim sucessivamente, exaustivamente. Isso ainda acontece em certa medida, mas não é mais a regra. É só o impulso.
Recentemente vemos cada vez mais memoriais abstratos que comemoram vítimas de forma artística e nos distanciamos da História. É claro que a arte tem um papel fundamental em nos fazer sentir, mas se não está acompanhada de contexto, a História se perde e o obetivo também. É comum vermos a geração Z fazendo selfies no Memorial dos Judeus Mortos no Holocausto e não visitarem o seu (excelente) museu subterrâneo em Berlim. O lugar é fotogênico e há uns desavisados que chegam até a fazer parkour por lá.
Em 2014, entrevistei visitantes da East Side Gallery, o trecho mais visitado do Muro de Berlim. São mais de 1,3 km decorados com centenas de murais artísticos feitos depois da queda do Muro, mas antes da reunificação do país. Naquele momento, a ESG ainda não possuía nenhuma interpretação histórica. Perguntei se as pessoas sabiam o que estavam visitando e apenas algumas sabiam mais ou menos do que se tratava, mas nenhuma sabia da origem dos murais e razão de estarem ali por mais de vinte anos. Mesmo os berlinenses não sabem, mas ali é um ótimo lugar para incluir na checklist instagramável da cidade e por isso há tantos visitantes. Imperdível.
Do outro lado do rio Spree, fica uma pedra que diz "ao refugiado desconhecido". Hoje, apenas pesquisadores (e pessoas que fizeram meu tour do Muro de Berlim) se lembram da história por trás do pedregulho. Ela foi posta em homenagem a o dono de um corpo que chegou à margem ocidental do rio que ficava entre as duas Berlins. Por anos durante o Dia de Finados, os cidadãos de Berlim Ocidental iam prestigiar a memória daquele corpo desconhecido que representava as diversas vidas arruinadas pela separação. Hoje, às vezes limpam o grafite e votam pelo nacionalismo do AfD.
A gente esquece.
Surpreendentemente, não há nenhum memorial em Berlim em relação à excursão colonialista alemã na África. Ali só se fala de Holocausto na Europa e de ditadura comunista. Se há algo sobre o tema em Portugal, desconheço. Aqui se referem ao colonialismo e ocupação de outros territórios como *Era dos Descobrimentos*. A Europa já reconhece e se envergonha do que fez dentro do próprio continente, mas o que está fora, bem, o que os olhos não vêem, o coração não sente.
O obelisco com crânios que menciono no início deste texto fica em um campo de morte do Camboja e os sapatos ficam em Auschwitz, na Polônia. Na minha opinião, poucos lugares de memória são realmente eficientes em nos transportar para um estado de empatia. É apenas através do choque ou da contação de histórias de vítimas, testemunhas ou agressores que chegamos a um entendimento histórico aproximado.
Na Cidade do México, há um museu incrível sobre o tema. O Museo Memoria y Tolerancia passa por diversos eventos históricos como o genocídio de Ruanda e a Ioguslávia, enquanto tenta nos aproximar empaticamente daquele momento. Quem seríamos naquele cenário? Vítimas? Heróis? Testemunhas silenciosas? Agressores? Teríamos mesmo a coragem de intervir ou de fugir?
Qual foi o museu ou memorial que você visitou que mais te balançou? Quero mesmo saber.
Auschwitz Foi muito impactante pra mim, em especial o galpão infantil.
Fiquei muito a fim de conhecer esse do México que você mencionou! 😘