{Estrangeira #15} Cemitérios
Meu relacionamento com cemitérios é legal e o seu também pode ser.
O primeiro cemitério que fui a turismo foi o Père-Lachaise em Paris. Não foi minha ideia, mas segui o ex que me levou lá. Agradeço, pois fiquei tão impressionada com aquele túmulo coberto de marcas de batom onde habitam os restos mortais de Oscar Wilde, que a cena nunca deixou minha mente. Nunca imaginei que um cemitério poderia ser tão interessante. Alguns anos depois, fui ao Cemitério da Recoleta em Buenos Aires e me impressionei com as verdadeiras obras de arte que marcam a partida de grandes personalidades, visitei a Eva Perón, mas não me motivei a buscar mais sobre o assunto.
Até que visitei o Cairo. Estive lá com meu pai um mês antes da revolução de 2011 e quem nos guiou pela cidade durante dois dias foi um taxista amigável. Um dos lugares que ele nos levou foi a Cidade dos Mortos ou Qarafa. Segundo ele, quem tem condições financeiras constrói uma casa acima dos restos mortais do ente querido. Sim, uma casa completa mesmo para o espírito morar. Quanto mais grana, maior a casa.
Em uma cidade como o Cairo, onde a pobreza é palpável, pessoas vivas passaram a ocupar estas casas feitas para os mortos transformando completamente a relação das pessoas com a finitude da vida e com a morte naquele bairro. Ao redor do cemitério, via vários edifícios aparentemente incompletos, sem reboco ou pintura, mas já totalmente ocupados. É que se você termina o edifício, o imposto aumenta. Enquanto isso, as ocupações do cemitério ocorriam em casinhas bem pintadas e mantidas.
Minha relação com cemitérios no Brasil era totalmente distinta da que tenho após morar em Berlim. Com cemitérios antiquíssimos, muitos deles assumiram o papel de parques onde as pessoas vão alegremente passear, fazer piqueniques e correr. Antes de viver esta experiência, eu via cemitérios como locais assombrados ou tristes. Lugares de perda e saudade incurável e às vezes de adolescentes góticas posando em ensaios fotográficos amadores.
Durante meu doutorado em patrimônio, este assunto veio à tona quando participei de uma conferência em Estocolmo sobre a morte. Havia um painel completamente dedicado a cemitérios e novas maneiras de lidar com a morte. Das dezenas de conferências que participei, essa de Estocolmo foi talvez a que mais me marcou.
Lá, aprendi sobre experiências bem sucedidas como o Hollywood Forever, um cemitério de celebridades nos Estados Unidos que também exibe filmes a céu aberto e aceita projetos para instalações artísticas. Descobri também mais sobre as florestas-cemitério da Europa onde as cinzas são espalhadas em uma árvore numerada proporcionando uma forma sustentável de memorialização que pode ser visitada por entes queridos.
Durante esta conferência, como parte do programa, também visitei o Skogskyrkogården, um jardim cemitério em Estocolmo onde descansa Greta Garbo. Lá, diferente de muitos cemitérios-floresta, existe também a possibilidade de lápides. Com ou sem lápide, há algo que se fez óbvio durante toda a minha pesquisa acadêmica: precisamos de um local para honrar os nossos mortos.
Muitas vítimas do regime nacionalista alemão não puderam contar com estes locais de descanso que servem mais como uma maneira de lembrarmos da existência e do legado que deixamos para trás. As Stolpersteine são pequenos marcadores de metal dourado no pavimento em frente a última morada sabida de vítimas. É um projeto de memorialização de vítimas descentralizado e iniciado pelo artista Gunter Demnig de forma ilegal, mas que agora, após forte apoio do público, tomou grandes proporções e é aclamado pelo governo. Qualquer um pode pesquisar sobre uma vítima e financiar a implementação de uma Stolpersteine.
Depois de viver estas experiências, passei a notar os cemitérios ao meu redor. Em uma visita aos Açores, notei que o cemitério lá era bem apertadinho e que havia fotos em todas as lápides. Aqui em Portugal continental, já vi túmulos cobertos por um vidro e, do outro lado, um jardim selvagem. Passei a prestar atenção nestes lugares e a olhar com carinho e outros olhos até mesmo o São João Batista, no Rio de Janeiro, onde estão meu pai e avós.
Lembro que meu pai costumava dizer que tinha apartamento com vista para o Cristo. O São João Batista é uma loucura no meio da Zona Sul do Rio onde, além da vista para o Cristo, meu pai também tem uns vizinhos tipo Cazuza, Carmen Miranda, Tom Jobim e Santos Dumont. E há um tour guiado lá, meio complicado de agendar, mas também tem audioguia para navegar aquele caos de túmulos e arte bem carioca.
Como lidamos com a morte e nossos mortos diz muito sobre a nossa cultura, mas observar como outros o fazem pode trazer insights incríveis sobre a nossa própria existência.
Hoje eu queria te convidar a pensar sobre estes espaços e sobre estas configurações para honrar a memória daqueles que se vão, mas deixam algo para além da própria vida.
Mini curadoria semanal
Amei o texto da Fernanda sobre como organizar prioridades e evitar pirar o cabeção. Algo que preciso melhorar. O texto dela é minucioso, mas sem ser chato, refletindo a personalidade dessa médica curiosa que posso chamar de amiga.
Vale conhecer o trabalho da Michele Cedro que além de bióloga e guia de famílias na Chapada da Diamantina, também está construindo com as duas mãos de mãe solo dela um Airbnb em uma carcaça de ônibus.
Comprei o curso do Tiago do Tira do Papel em uma madrugada desse fim de semana. Comece pela news dele que traz mini insights sobre criatividade além de links sobre criações variadas. É sempre um respiro.
Recentemente meu avô foi cremado e jogamos as cinzas no mar, onde ele costumava nadar na juventude. Foi uma experiência muito diferente dos enterros que já fui. Me fez refletir bastante sobre o assunto.
Não lembro de visitar cemitérios como turista, mas por motivos de despedida mesmo estive em alguns bem bonitos por aqui como o da Praia dos Ossos em Búzios e o Cemitério dos Ingleses na Gamboa. Lugares com natureza realmente trazem mais leveza para esse momento.
Quando morei em Washington achei estranhíssimo o hábito das pessoas almoçarem no cemitério! Tinha um perto da minha casa que consistia num grande gramado cheio de lápides e q na primavera ficava verdinho, florido e cheio de gente que deixava seus locais de trabalho e lá sentavam na grama para almoçar. Com o tempo fui percebendo que era uma ótima ideia almoçar ali ao ar livre, aproveitando o sol, o silêncio e a tranquilidade que contrastavam demais com a rua movimentada em q ficava o cemitério. Para quem almoçava ali era um lugar muito apropriado para sair do caos urbano, da sala fechada do trabalho, enfim era um lugar para relaxar e repor as energias para seguir trabalhando.
Adorei o cemitério de árvore q você descreveu! Na casa da minha família em Búzios já temos cinzas de três queridos: um amigo dos meus pais q está no Pau Brasil, meu pai q está no canteiro só dele, um amigo meu q está no vaso de uma planta centenária. Minha mãe já tem
um canteiro que a receberá um dia e eu quero ficar espalhada por lá no pé de brinco de princesa, na quaresmeira, num outro Pau Brasil onde está enterrado meu amado cão Jonas e ainda, no pé de Cacho de Ouro.😀😉😘